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MODERAÇÃO NO BIG DATA

Só no ano passado, 1,4 milhão de smartwatches e fitbands foram vendidos no Brasil. Estamos cada vez mais municiados de dados sobre nossos sinais vitais e performance esportiva, mas sem alguns cuidados o resultado pode ser uma vida menos saudável

TEXTO FERNANDA COLAVITTI

A ideia de investir em um smartwatch pode ser tentadora para quem está querendo levar uma vida mais saudável: basta apertar um botão para checar a frequência cardíaca, o número de passos dados, as horas dormidas, monitorar a queima de calorias, lembrar de se levantar da cadeira e até de respirar. A possibilidade de ter a saúde vigiada 24 horas por dia ajuda a explicar a crescente popularidade desse tipo de gadget. Em 2020, foram vendidos 1.394.857 fitbands e smartwatches no Brasil, um aumento de 81% em relação a 2019. Só no primeiro trimestre de 2021, foram comercializadas 615.721 peças do gênero, segundo o estudo IDC Tracker Brazil Wearables Q1 2021, realizado pela consultoria International Data Corporation (IDC) Brasil.

Essa prática de automonitoramento já se tornou tão popular nos Estados Unidos que tem até um nome: “quantified self” — ou “eu quantificado”, em tradução livre. Mas especialistas advertem que medir cada passo (literalmente) pode causar um problema: a ilusão de que os dados pareçam suficientes e muito mais precisos do que realmente são. “Se fosse tão simples assim, os médicos abandonariam o estetoscópio e os hospitais não precisariam mais de equipamentos caros. Todos usariam smartwatches”, diz Alberto Filgueiras, coordenador do Laboratório de Neuropsicologia Cognitiva e Esportiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ele explica que esses relógios coletam a grande maioria das informações fisiológicas de forma indireta. Por isso, os dados obtidos contêm uma série de “impurezas” do ponto de vista estatístico, o que os torna distorcidos. “Por melhor que seja o aparelho, ele não foi construído para fazer exames médicos.”

Isso significa que não dá para confiar 100% na informação que o visor do relógio está mostrando, nem se podem tomar decisões, como iniciar uma dieta ou aumentar o ritmo das atividades físicas, com base exclusivamente no que se lê nas telas. Não se trata, portanto, de equipamentos médicos. Em relação à medição da queima calórica, por exemplo, um estudo realizado na Universidade de Stanford, nos EUA, mostrou que a maioria dos smartwatches é imprecisa, podendo superestimar a perda de calorias em até 93%. “Cada organismo reage de uma forma, levando-se em conta fatores como quantidade de gordura, de massa magra, metabolismo, entre outros que não podem ser padronizados”, explica a nutricionista Viviane Gomes, do Instituto Castro.

A Força-Tarefa de Serviços Preventivos dos EUA, um painel independente de especialistas, alerta contra o uso indiscriminado que pessoas saudáveis têm feito da função de eletrocardiograma, disponível em alguns modelos de relógio. Os médicos americanos expressaram preocupação quanto aos riscos de sobrecarga do sistema de saúde com pedidos de exame desnecessários, e também quanto à ansiedade gerada nas pessoas que não têm nenhum problema no coração.

O cardiologista Hélio Castello, que atua na área de inovação e é mentor de uma startup de cardiologia (Heart Care App), conta que já presenciou esse tipo de comportamento exagerado. Sua equipe está testando um medidor de frequência cardíaca pela lanterna do celular. Para isso, a pessoa precisa colocar o dedo em um sensor. “Chegamos a ter cerca de 30 mil usuários, mas o número de medições de frequência cardíaca passava de 18 milhões. Vimos que tinha gente que media 20 vezes por dia, criando um hábito não saudável”, diz ele, que também é intervencionista do Grupo AngioCardio, de São Paulo. Em seu consultório, não é incomum atender pessoas preocupadas com o que veem no relógio. “Já tive pacientes com frequência

de 60, 70 bpm que, quando subiam a escada correndo e chegavam a 120, 130 bpm — o que é normal —, logo entravam em contato comigo, assustados.” O médico se mostra reticente inclusive quanto à aferição da pressão sanguínea pelos smartwatches. “Será que o aparelho vai medir a pressão corretamente para sempre? Como ele está em contato com a pele, será que, se ela estiver mais oleosa, ou menos, vai medir do mesmo jeito?”, questiona.

Segundo o neurologista Diogo Haddad, chefe do Serviço de Neurologia Comportamental da Santa Casa de São Paulo, é preciso tomar cuidado com o excesso de informações. Ele relembra casos de pacientes que tiveram problemas devido ao exagero no monitoramento das funções fisiológicas. “Um deles, que já tinha padrão de ansiedade, começou a ter muito medo de ver as informações sobre seu corpo. Passou a sentir formigamento, ansiedade e batimentos acelerados”, conta. “Não precisa cortar o uso, apenas equilibrá-lo”, explica.

BENEFÍCIOS

Com as devidas ressalvas, o cardiologista Hélio Castello vê com bons olhos a aplicação da nova tecnologia na área da saúde. “As informações do gadget valem como parâmetro para a pessoa saber quando precisa procurar ajuda médica”, afirma. O especialista diz que a medição da frequência cardíaca feita pelos smartwatches, ainda que não seja 100% precisa, somada à da oxigenação do sangue (que ele diz também ser confiável), é uma boa pulguinha atrás da orelha do usuário. “Mas em hipótese alguma a pessoa tem que se medicar com base nos dados do aparelho”, reforça.

Tendo sempre em mente que o gadget não substitui a consulta médica nem o check-up, o smartwatch pode ajudar quem está se esforçando para adotar um estilo de vida mais saudável, explica a profissional de educação física Emília Regina Vargas Toledo. Ela conta que o monitoramento diário é uma forma de a pessoa perceber, por exemplo, se está passando muito tempo sentada ou bebendo pouca água. Sobre as funções para a prática de exercícios, Emília destaca que o aparelho pode ser um estímulo para se movimentar. “Observar o sedentarismo em gráficos pode ter um efeito psicológico mais forte e levar a uma tomada de atitude.”

Para quem já pratica alguma atividade, ela diz que o relógio ajuda a identificar a melhora no condicionamento. “É possível fazer essa mensuração por meio da observação da frequência cardíaca.” Mas, para isso, além de monitorar os batimentos, é preciso saber quanto o coração aguenta — e isso nenhum smartwatch pode fazer. “A frequência cardíaca máxima varia de pessoa para pessoa e só pode ser identificada precisamente com um teste ergométrico, avaliado por um cardiologista."

CARTA DO DIRETOR

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2021-11-10T08:00:00.0000000Z

2021-11-10T08:00:00.0000000Z

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